Priorizar a preservação de ambientes de água doce, como rios e lagos, é uma das maneiras mais inteligentes de impedir a perda da biodiversidade, mostraram pesquisadores brasileiros. Com base em dados obtidos em duas regiões da Amazônia, eles concluíram que proteger esse tipo de ecossistema tem efeito igualmente positivo sobre as espécies terrestres.
REINALDO JOSÉ LOPES/SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS)
A descoberta é importante porque a recíproca não é verdadeira. Hoje, o planejamento da conservação quase sempre é feito pensando primeiro nos ambientes fora d’água. No entanto, essa priorização acaba deixando as espécies de água doce pouco protegidas, revela o novo estudo, publicado na prestigiosa revista especializada Science. “É comum que os rios funcionem para demarcar o limite, a borda de uma área protegida. O problema é que eles deveriam ser centrais”, resume a primeira autora do trabalho, Cecília Gontijo Leal, pesquisadora de pós-doutorado na Esalq-USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, na USP de Piracicaba).
Com efeito, as áreas de água doce combinam uma série de características que ressaltam a necessidade de protegê-las com mais eficiência. Embora abranjam menos de 1% da superfície terrestre, abrigam 10% de todas as espécies conhecidas, entre as quais um terço de todos os vertebrados (principalmente peixes e anfíbios, mas não apenas eles). De 1970 para cá, aliás, enquanto as populações de vertebrados terrestres e marinhos caíram cerca de 40%, as dos de água doce despencaram 83%. Portanto, são áreas que misturam alta diversidade com alta fragilidade.
Leal e seus colegas de instituições do Brasil e do exterior obtiveram dados sobre mais de 1.500 espécies de plantas e animais nas regiões de Paragominas e Santarém, ambas localidades paraenses afetadas pelo avanço da fronteira agrícola sobre a Amazônia, mas com características ambientais diferentes, sob efeito de rios diversos. Em terra, eles coletaram amostras de plantas, aves e besouros; nas águas, de peixes e de grupos de invertebrados que dependem do meio líquido, como as libélulas.
Esses dados foram usados para alimentar programas de computador criados para obter as melhores decisões possíveis sobre proteção ambiental -ou seja, que tipo de área protegida abrigaria o maior número possível de espécies em ambos os ambientes, levando em conta também fatores como o custo de colocar isso em prática. A questão é, que dependendo de como essa priorização era feita, os resultados variavam um bocado. Quando o foco são os ambientes terrestres, os de água doce recebem apenas 22% dos benefícios que receberiam caso eles tivessem sido a prioridade.
Quando o planejamento é feito de forma a integrar as necessidades de ambientes terrestres e aquáticos, porém, os benefícios para as espécies de água doce chegam a aumentar até 600%, enquanto os terrestres perdem apenas 1% da proteção que teriam. Na prática, diz a pesquisadora, isso significa que faz muito mais sentido criar reservas ambientais que levam em conta toda a trajetória dos principais rios de uma região e as terras que eles drenam, desde as cabeceiras.
“Se você não considera isso, a gente tem problemas como os que afetam o Parque Indígena do Xingu hoje. A área dele está relativamente protegida, mas as nascentes dos rios que o abastecem estão fora do parque, sofrendo influências do desmatamento e do agronegócio”, explica Leal. “É algo que outras pessoas já imaginavam, mas isso nunca tinha sido mostrado tão claramente, em parte por causa da qualidade dos dados que nós conseguimos obter fazendo boas coletas tanto de espécies de água doce quanto terrestres. Em outros projetos, muitas vezes as espécies de água doce eram pouco coletadas.
Nesse tipo de planejamento, outro ponto crucial é a conectividade -grosso modo, a preocupação com a continuidade dos ambientes aquáticos. Peixes, por exemplo, frequentemente precisam subir o rio para a desova, processo muitas vezes atrapalhado pela criação de hidrelétricas. “Mas não é preciso algo do porte de uma hidrelétrica para que ocorram efeitos sobre a conectividade. Intervenções em escala menor, como açudes e estradas, podem causar problemas, como temos visto na Amazônia”, diz a pesquisadora.
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